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Música Urbana no Rio de Janeiro entre 1930 e o final do Estado Novo: a construção de uma memória.

Por Luiz Otávio R.C. Braga

Música Popular e Identidade Nacional

Os estudos sobre a música popular urbana brasileira inserem-se na tradição que a discussão sobre a cultura brasileira constitui. Carregam com eles a questão da identidade nacional. De certa maneira, discutir a música popular no Brasil já constitui outra tradição.

A memória da música popular produzida a partir da década de 30 foi escrita no contexto da revisão das teorias racistas. Seus escritos foram contemporâneos de tessituras que valoravam positivamente a mestiçagem. Para esse "valor positivo" contribuem com a idéia de originalidade musical carioca e brasileira, capaz mesmo de nos diferenciar dos demais povos. Orestes Barbosa e Francisco Guimarães, mais Alexandre Gonçalves Pinto, procuram cada um a sua maneira, demonstrar essa originalidade através da música do Samba, no primeiro caso e do Choro, no segundo.

Musicologia, Literatura, Folclore e História.

Os estudos sobre a música brasileira, não podem prescindir, a nosso ver, da consideração dos estudos de Mário de Andrade e Renato Almeida. Tangenciando os domínios do folclore, da musicologia e da história da música e do campo literário, suas posturas científicas revelam preocupação permanente com o problema da identidade nacional e mais dramaticamente explicitam uma preocupação ideológica nacionalista. Com o dar atenção a esses dois autores, com certeza se deixa melhor clarificado o momento brasileiro e internacional em que os textos memorialistas de Pinto, Orestes e Vagalume foram escritos.

Em A História da Música Brasileira Renato Almeida vê a música como um processo no processo geral da formação e da afirmação da nacionalidade brasileira, chamando a atenção para a questão da miscigenação e assinalando o fator "meio [ambiente] especial" como entidades determinantes da nacionalidade musical. Sua idéia basal da "construção" da tradição da música popular é a persistência perfeitamente nacionalizada tomada emprestada a Mário de Andrade.

Pressupondo que a nacionalidade musical estaria melhor representada pelas danças e pelo folclore, seria na luta pela pesquisa folclórica e preservação à base de incentivos a ele dados que se construiria uma memória musical popular articulada sobre uma dimensão dual de permanências e persistência que confluiriam, a partir de suas naturezas não necessariamente estáticas, numa operação sobre as constâncias dos elementos constitutivos, estas expressas de formas continuamente transformadas conforme o trajeto evolutivo. Em suma, uma memória folclórica de constâncias em perene transformação.

Quanto a Mário de Andrade, o Ensaio sobre a música brasileira, de 1928, considerado a "bíblia" do nacionalismo musical brasileiro erudito, fala por si mesmo no que se refere a "invenção" de uma tradição musical erudita no país. O fato de articular um projeto para a chamada "música séria" obriga-o a um permanente diálogo com a música popular folclórica mas também com a música popular urbana, esta em caráter limitado, alinhada como pouco ter de apresentável no que concerne ao seu aproveitamento como fonte de invenção erudita.

No que respeita a música urbana, são importantes os principais artigos publicados na imprensa periódica entre 1924 e 1944, coligidos sob o título Música, Doce Música, segundo a escolha do próprio Mário de Andrade, mesmo porque versam sobre "temas e artistas que os estudantes de música devem matutar". Cremos que, em muitos desses artigos, de forma indireta, Mário de Andrade contribui para a memória dessa atividade de músicos considerados incultos (grifo nosso). Assim, destacam-se em quatro deles, menções diretas a compositores populares: Ernesto Nazareth (2 artigos), Marcelo Tupinambá e Chiquinha Gonzaga .

No artigo de 1926, sobre Nazareth, impunha-se matutar sobre a excelência de sua obra pianística e puxava as orelhas da musicologia nacional, desatenta à força normativa que tinham as produções populares para organizar a musicalidade brasileira já de caráter erudito e artístico (grifo nosso). O artigo de 1940 repete o tema Nazareth, aproveitando para fazer uma intrigante relação entre o que considera "tradição", transformação e reprodutibilidade técnica e reafirmar a crença particular de que Nazareth não podia ser considerado um músico popular exatamente. Em Marcelo Tupinambá, de 1924, presta-se a confirmar decididamente o reconhecimento de que a música brasileira desde os anos 10 tinha já se aproximado de um expressar-se original e étnico. Compara Tupinambá e Nazareth, opondo o rural ao urbano das grandes cidades. Já a crônica sobre Chiquinha Gonzaga cumpre colocá-la como de grande importância na "evolução da música popular urbana do Brasil" e explicar o seu esquecimento pelo tipo de composição a que se prestara: música transitória era o que resultava de compor música de dança, de revista de ano e similares

Os aspectos rememorativos nas crônicas de Mário de Andrade se revelam menos pela intenção do que pela associação que se pode fazer delas com as falas daqueles memorialistas por excelência mesmo. Assim, considerar esses escritos como também elementos para a memória da música popular, quer diretamente pela via dos músicos e da crítica musical, quer indiretamente pela pesquisa musicológica, ata-se ao fato de que consideramos tais críticas fortemente importantes pelo chamamento da atenção para a pesquisa do folclore e para as "qualidades ou valores folclóricos", oportunidade em que incluía os compositores urbanos. A constante valoração que faz da modinha e do lundu, das baixarias dos violões do Choro é um aspecto desse "valor folclórico"; os recortes musicológicos trazem sempre alguns exemplos mais. Daí que Mário é no mínimo um animador da construção dessa memória pela sua qualidade de ideólogo da invenção de uma música nacionalista que já possuía, ao seu ver, no popular urbano e folclórico, o seu "nacional".

O Samba: sua história, seus poetas, seus músicos e seus cantores

A idéia fulcral do trabalho do compositor de Chão de Estrelas é demonstrar, no seio da tradição, a modernidade do samba. Aliás a paternidade da modernidade nacional tinha começado nas ruas pela gentes de Orestes, noves fora, a paternidade da invenção do samba.

Para Orestes, cada povo tinha a sua alma, fruto das suas origens étnicas, das suas histórias, das suas paisagens, dos seus climas, das suas paixões. O Rio, era um laboratório de emoções daí ter criado além da alma, o seu ritmo musical. Nessa empreitada não faltavam nem mesmo os elementos mitológicos e heróicos (como o dos Tamoios e a "tradição" da Inúbia), posto que a história do samba era uma história de lutas. Nesse sentido não falta mesmo uma relação de "apropriação" germinal nos simbolismos que constroi.

Pela reverência a dezenas de artistas, mortos e vivos, fatos, letras, títulos e pela articulação daquilo que constituiria uma tradição do samba - a polca, o lundu, o maxixe, nada mais foram do que "sambas do tempo do imperador"-, Orestes inventa concretamente uma linha extensa ao passado recente: música espontânea da cidade que vinha das modinhas e lundus de um Laurindo Rabelo, passava pelo cantor de rua sem ideal na vida que não o da poesia, como Eduardo das Neves e tinha em Nássara a pena jovem caricatural, "alma de paisagista". Era vital o reconhecer de sua tradição como fator validador de sua modernidade.

O olhar de Orestes para o samba é um "olhar de civilização". O samba vivia no morro com o seu "lirismo exclusivo", espreitando "a claridade do urbanismo que, afinal, olha para cima, atraído pelas melodias, e sobe, então, para buscá-las e trazê-las aos salões." O urbanismo e seu conjunto de técnicas afluentes, de que não lhe escapa o registro, representam condição vital para que se constitua um olhar que partindo de baixo vislumbre a possibilidade da modernidade acenada: o samba, sinal e símbolo.

Se por um lado recupera a memória da música brasileira, por outro, opera no sentido de "inventar" uma tradição. Essa invenção traz, por exemplo, a "invenção de uma nova tradição de canto", correlata à arte de um novo repertório. O espírito de modernidade, era necessário que o trouxesse para os salões; a recusa, recusar a possibilidade de modernizar-se; condená-lo [e ao pais] ao silêncio ancestral da escravidão do passado. Exigia o samba na vitrola de todos e... vitrola para todos.

O Na Roda do Samba, de Francisco Guimarães, o Vagalume é também um livro sobre o samba. Ocuparão lugar de proa, na construção dessa memória, os sambistas da roda do samba, para ele os representantes legítimos, os "inventores" daquela tradição.

Para isso divide o livro em duas partes. Na primeira , denominada O SAMBA, está explícita a tentativa de construção da memória do samba: origem; distinção social, as gentes de outro tempo; discute as inovações técnicas ao declarar a decadência da vitrola; Sinhô e a grande linhagem do samba. Na segunda parte, dedica-se à A VIDA DOS MORROS", já cabendo de pronto a observação da contração "dos": o morro organismo, organização social, dono de vida própria autônoma, culturalmente diferenciado do restante da cidade, tristemente esquecido pelos governantes e, fundamentalmente, com música própria.

O samba dataria, segundo Vagalume, "dos fins do primeiro Império" Na linhagem havia o jongo, o batuque e o cateretê. Imediatamente anterior ao samba tinha-se o fado. Pede não confundir o nosso com o fado português. O samba, da Bahia teria ido para Sergipe, vindo depois para o Rio e aí reinara. Destaca uma classificação: o samba raiado — de som e sotaque sertanejos; o samba corrido — "já melhorado e mais harmonioso e com a pronúncia da gente da capital baiana"; em seguida o samba chulado— "hoje em voga; é o samba rimado, o samba civilizado, o samba desenvolvido, cheio de melodia..." E declinava seus autores, entre eles Sinhô, o "grande mestre", era o samba que depois de por ele elevado "passou por uma grande metamorfose".

Vagalume constrói a memória do samba tomando um caminho crítico e problemático: confronta-o com a industria cultural emergente. Coloca de um lado os sambistas diretamente ligados à roda do samba, os maestros - suas características de vida familiar, religiosas, enfim, suas condições sócio-econômicas possibilitaram-lhes a vivência festiva e prazerosa produzida nas organizações festivo-religiosas das comunidades ( as "tias", o candomblé, os ranchos e escolas de samba etc). Este o argumento maior, o selo de validade e autenticidade daquilo que Vagalume entendia como samba. Estar associado à roda era orgânico, indispensável. Do outro lado, os sambistas industriais, que sem necessariamente terem articulado sua visibilidade de produtores pelos juízos das comunidade do samba, ligavam-se diretamente à industria cultural emergente.

?Portanto, é fundamental no livro a percepção de uma fenomênica que manifesta seus impactos na cidade de modo geral e acelera o processo de apropriação cultural pelos diversos segmentos sociais do Rio de Janeiro. O rádio e a indústria fonográfica, o cinema falado, entre outros aspectos técnicos que aportam no imaginário social da época, impulsionam a expansão de um campo artístico musical centrado nas manifestações urbanas cuja característica principal é a diversidade de iniciativas projetadas em função de características já profundamente arraigadas na sociedade carioca. Tais processos são percebidos por Vagalume, que enfatiza a apropriação que se realiza por agentes de duas classes distintas: a roda do samba e os artistas ligados a indústria musical. Tendendo a enfatizar com pessimismo a aproximação desses últimos, inclina-se a minimizar os efeitos de apropriação que se dão no movimento inverso. Aparentemente produz uma visão estática daquilo que constituiria uma tradição nacional, o samba verdadeiro. O "outro", proveniente das transformações que percebe, mas reduz ao industrialismo, seria a decretação da falência dessa tradição.

O Choro carioca pelas memórias de um carteiro

Alexandre G. Pinto, o Animal, violonista e cavaquinista, homem humilde, de pouca instrução, carteiro dos Correios e Telégrafos, através de O Choro. Reminiscência dos chorões antigos, incumbe-se de desfazer uma grande injustiça: "livrar do esquecimento" imposto pelas mudanças sociais que percebe,— refletindo-se na música que norteara toda a sua existência— músicos, homens que construíram, "no tempo antigo", a tradição. Registra em tom não raro lamentoso a ação de cerca de trezentos músicos e a percepção de profundas mudanças na sociedade do Rio de Janeiro dos anos 30.

O ponto culminante no livro do carteiro escritor é a crônica intitulada A Alvorada da Música onde sugere claramente uma origem para o Choro, confirmando o programa das atividades dos chorões pela agenda das festas religiosas oficiais e particulares do Rio de Janeiro.

A descrição dos passos dos principais chorões, seus ofícios, algumas famílias, animadores intelectuais ou não, as festas oficiais e de bailes, casamentos, batizados, os "pontos" onde se os arregimentava, a "fixação" nas características dos "comes e bebes", os gêneros musicais tocados; tudo remete a fenomênica encontrada pelos historiadores da cultura popular ao tomarem as festas religiosas como o espaço de interação e produtividade cultural. Alexandre Gonçalves Pinto confirma, no seu modo muito pitoresco, a hipótese que sublinha as festas públicas como o espaço onde se dão, no período, encontros de culturas distintas e onde trocas culturais são possibilitadas; onde o fenômeno de apropriação encontra as condições para a expansão das experiências culturais e, a nosso ver, institui uma base onde se "inventa"a música popular urbana. A Alvorada possui o significado intrínseco de chamar (clamar pela) a atenção dos tempos modernos, para a origem daquela musicalidade que agora se desdobrava em técnica, inovações, maneiras de cantar e tocar emergentes, subserviência ao "barulho" das músicas estrangeiras. O apelo não prescinde do chamamento mais próximo do grito patriótico, se há o perigo do esquecimento do que é "genuinamente brasileiro".

Conclusão

Escritos no albor da década de 30, os três textos são contemporâneos de uma nova maneira de olhar a cultura popular. Trazem nas suas narrativas questões histórico-musicológicas, sociológicas; questões relativas ao estado da arte em face das mudanças técnicas e da arrancada industrialista. Em ampla medida mostram claramente o quanto a escrita dessa memória se liga, de modo muitas vezes visceral, a invenção de todo um simbolismo, à questão da construção da identidade nacional.

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